CASO MÃE GILDA - INTOLERÂNCIA
Assim
ficou popularmente conhecido e divulgado até internacionalmente, a
absurda ação de intolerância religiosa praticada pela Igreja Universal
do Reino de Deus – Iurd contra a Iyalorixá Gildásia dos Santos e
Santos – a Mãe Gilda.
Moradora e fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum, Terreiro de
Candomblé localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté, bairro de
Itapuã, Salvador (BA), Mãe Gilda tinha uma vida discreta desde o ano
de 1996 quando fundou o terreiro, iniciando sua prática religiosa
naquele local.
A agressão
Mãe Gilda exercia suas práticas religiosas cotidianamente e sua Casa
era freqüentada por adeptos moradores da comunidade, como também por
aqueles oriundos até de outros estados.
A saga do Abassá de Ogum, hoje emplacada pela atual Iyalorixá
Jaciara Ribeiro dos Santos, filha consangüínea de Mãe Gilda, iniciou
quando esta resolveu participar das manifestações públicas e populares
pela reivindicação do impeachment do então presidente da república
brasileira, Fernando Collor de Mello. A campanha ficou conhecida como o
‘Fora Collor’, na década de 1990, e contou com a participação ativa de
milhares de cidadãos brasileiros em todo o território nacional
contendo diversas expressões, das mais variadas vertentes populares
e/ou governamentais, como forma de demonstrar a insatisfação com a
situação e garantir a destituição do presidente. Tudo muito divulgado
na imprensa, com ampla cobertura na mídia televisiva, escrita e nas
demais formas de comunicação.
Entretanto, foi a forma de expressão da Mãe Gilda eleita pela Iurd
para atacar o povo do Candomblé na sua crença e manifestação prática
da sua religiosidade.
A revista Veja publicou matéria em 1992, em que aparecia uma foto de
Mãe Gilda, trajada com roupas de sacerdotisa, tendo aos seus pés uma
oferenda como forma de solicitar aos orixás que atendessem às súplicas
daquele momento. A Iurd publicou essa fotografia no jornal Folha
Universal, em outubro de 1999, associada a uma agressiva e
comprometedora reportagem sobre charlatanismo, sob o título:
“Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. A
matéria afirmava estar crescendo no País um “mercado de enganação”.
Nesta reportagem, a foto da Mãe Gilda, aparece com uma tarja preta nos
olhos. A publicação dessa foto marca o início de um doloroso, porém
definidor processo de luta por justiça da família e de todos os
religiosos do Candomblé.
A repercussão
A Folha Universal tinha na época uma tiragem de 1.372.000 unidades,
ampla e gratuitamente distribuídas. Ora, inevitavelmente a comunidade
local tomou conhecimento da reportagem e, por uma falta de compreensão
do que estava acontecendo, até integrantes de sua própria comunidade
interpretaram que a Mãe Gilda havia se convertido e estava pregando
contra sua religião, pois sua foto estava naquele veículo. Qual a
conseqüência disso? O descrédito e afastamento de fiéis! E mais: dada a
fragilidade do momento, adeptos de outras religiões sentiram-se no
direito de atacar diretamente a casa da Mãe Gilda, agredindo-a e ao seu
marido, verbal e fisicamente, dentro das dependências do Terreiro,
até quebrando objetos sagrados lá dispostos.
Diante destes fatos, com a saúde fragilizada, Mãe Gilda não suportou
os ataques: seu estado piorou e ela veio a falecer no dia 21 de
janeiro de 2000.
A luta contra a intolerância religiosa: mobilização e conquistas
Logo após o reconhecimento da agressão à Mãe Gilda, sua filha, Jaciara
Ribeiro dos Santos, moveu uma ação contra a Iurd, por danos morais e
uso indevido da imagem. Procurados por Jaciara, os advogados de
KOINONIA (convênio com a Associação de Advogados de Trabalhadores
Rurais no Estado da Bahia – AATR) passaram a representar a família na
ação, por meio da assessoria do Programa Egbé Territórios Negros. O
falecimento de Mãe Gilda se deu no dia seguinte em que assinou a
procuração constituindo seus advogados para defender o caso, em clara
expressão do seu desejo por reparação.
É exatamente a partir deste momento, quando KOINONIA assume a
defesa do Caso Mãe Gilda, que o tema da intolerância religiosa passa a
ser discutido, numa mudança perceptível no comportamento de diversos
segmentos da sociedade, que se engajam nessa luta, se apropriando do
tema que há muito tempo precisaria sair do anonimato.
Após o período de luto e de atividades sucessórias, assumiu a Iyá Jaciara.
Atualmente, como forma de reconhecimento, inicialmente do Município de
Salvador e posteriormente, do Governo Federal, foi instituído o 21 de
janeiro como o Dia de luta contra a intolerância religiosa. Data em
que pessoas de diferentes credos, raças, etnias, sexo celebram mais um
passo a favor da dignidade humana para compartilhar caminhos que
possibilitem o enfrentamento a essa vergonha, que se alastra de forma
ampla, geral e irrestrita: a Intolerância Religiosa. Esta forma
nefasta de impedir a livre expressão religiosa individual e coletiva
garantida por lei, é desrespeitada por vários setores da nossa
sociedade. Inclusive por instituições religiosas que, apesar de
pregarem princípios de amor ao próximo, solidariedade e respeito, não
estão devidamente preparadas para responder a esse desafio e acabam por
demonstrar preconceitos e descriminar a partir de posturas
institucionais, como o caso de Mãe Gilda, que hoje serve de inspiração e
símbolo de luta para todos nós.
Cinco anos depois do início do processo, em 2004, a Iurd foi
condenada em primeira instância, ficando estabelecido o ganho de causa
da ação de Mãe Gilda. A sentença, favorável à ação indenizatória,
pode ser descrita resumidamente:
- Condena a Iurd e a sua Gráfica a publicar a sentença na capa e encarte do Jornal Universal e por duas tiragens consecutivas;
- Condena a Iurd e a sua Gráfica a indenizar a família em R$
1.372.000 (fazendo a equivalência de R$ 1,00 para cada exemplar da Folha
Universal distribuído), reajustáveis pelo Inpc desde 1999;
- Determina que o Ministério Público abra processo criminal contra a IURD.
Em apelação na segunda instância – Tribunal de Justiça da Bahia –
pela Igreja Universal e sua gráfica, o processo ficou sem resposta até
maio de 2005, quando o povo do Candomblé realizou um
ato público em frente ao Tribunal de Justiça da Bahia para reivindicar a agilização da decisão do tribunal.
Em 6 de julho do mesmo ano, saiu a decisão sobre o caso: o Tribunal
de Justiça da Bahia julgou e condenou, por unanimidade, a Igreja
Universal do Reino de Deus por danos morais e uso indevido da imagem
da Iyalorixá Mãe Gilda. O resultado do julgamento ratificou, por
unanimidade, a decisão da 1ª Instância, apenas reduzindo o valor da
indenização para R$ 960.000,00.
A sessão do julgamento foi assistida por dezenas de pessoas, entre
familiares e amigos de Mãe Gilda, freqüentadores de Terreiros de
Candomblé, militantes de movimentos sociais, estudantes e jornalistas
que foram agraciados com o reconhecimento de que a condenação estava
relacionada a um caso inquestionável de intolerância religiosa. Assim, a
sentença configura não só a vitória de uma causa pessoal, como também
coletiva: para todos aqueles que acreditam na convivência harmônica e
respeitosa entre as religiões.
Insatisfeita com o resultado, a Iurd recorreu da decisão, apelando
para Superior Tribunal de Justiça – STJ em Brasília, bem como ao
Superior Tribunal Federal – STF. Este último não aceitou o pedido,
julgando-o improcedente.
Após 9 anos de luta e diversas mobilizações públicas reivindicatórias
do desenrolar do processo, no dia 16 de setembro deste ano de 2008,
saiu a decisão da 3ª instância: o Superior Tribunal de Justiça
confirmou, também por unanimidade, a condenação da Igreja Universal do
Reino de Deus, em que esta fica obrigada a publicar retratação no
jornal Folha Universal, e a pagar indenização, reduzida de R$ 1,4
milhão, conforme decisão da 1ª instância, para R$ 145.250,00.
A enorme redução dos valores arbitrados para pagamento indenizatório
merece questionamento. Sendo quantia modesta para os padrões da
referida igreja, não causará impacto relevante em seus cofres, e,
portanto pode não cumprir a função de evitar ataques futuros. Apesar
disso, reconhecemos que a sentença representa um ganho político e
social sem precedentes na história do País, que vem reafirmar os
direitos garantidos pela constituição brasileira da liberdade de
expressão e contra qualquer tipo de discriminação. Trata-se, portanto,
da vitória de um povo que, historicamente, sofreu e ainda sofre este e
outros tipos de preconceito; que mesmo depois de cessadas as
perseguições policiais ainda continuava sem liberdade de expressão
religiosa.
O processo ainda está em fase de recurso, porém a vitória é certa e merecida na luta contra a intolerância religiosa!
Jussara Rego, assessora e coordenadora regional do programa Egbé Territórios Negros de KOINONIA.
Box:
Da legislação
Constituição Brasileira:
…
VI. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na
forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias;…
VIII. Ninguém será privado de direitos por motivos de crença
religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar
para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a
cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Código Penal:
Título V, Cap.I “Dos crimes contra o sentimento religioso (ultraje a
culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo).
Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou
função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto
religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso.